quinta-feira, 19 de maio de 2011

Editoria Jornalistas e Outros Parceiros

Caros Blog-leitores,


Faz uns dois anos que tive a oportunidade de ler e assistir de viva voz a pesquisa de Nathalie Paton, durante reunião, em Paris, do Centro de Análise e de Intervenção Sociológicas (CADIS-EHESS). Desde o primeiro momento, o seu trabalho pareceu-me original e vindo responder a questões que o decorrer dos anos e outros massacres fora dos EUA confirmariam a amplitude e importância. Depois do episódio de Realengo, não tive dúvida em convidá-la a contribuir com um flash de sua análise especialmente para o leitores do Blog Mídia e Questão Social.

A violência é, assim, segundo ela, menos estrangeira às relações sociais e à cultura do que parece. Seu texto abaixo não vem, portanto, repetir os argumentos, mobilizados à exaustão pela mídia, da desqualificação e desmoralização anteriores do agressor promovida pela experiência de bulliyng - menos incomum do que imaginávamos até então. Nathalie Paton, ao discorrer sobre o episódio de Virginia Tech (EUA, 2007), prefere colocar acento sobre o papel dos media na construção do sujeito na contemporaneidade. Se uma relação necessariamente se estabelece entre as novas tecnologias e a violência, Paton, com o apoio das lentes sociológicas, afirma que, num primeiro plano, trata-se de uma relação passiva e sem grande impacto. Os autores de tiroteios, porém, desenvolvem uma estratégia de resgate da sua virilidade e auto-estima, por meio de uma operação violenta, em que a mídia, coprodutora do evento midiático, não se recusa a promover a visibilidade de tal banquete trágico e seus despojos. E é aí que ações isoladas ganham significado e materialidade.


Mione Sales*
(Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta)


:::::::::::::::::::::::::::::

Um pouco de luz sobre os autores de tiroteios em escolas e seu público
- Um estudo da experiência social da violência através da mídia -





Nathalie Paton*

Tradução:
MIONE SALES **


       No dia 7 de abril de 2011, teve lugar em Realengo, bairro da zona Oeste do Rio de Janeiro, um dos episódios mais sangrentos da história das escolas brasileiras. O fato que ganhou rapidamente amplitude midiática foi transmitido, posteriormente em várias redes de televisão em cadeia nacional, graças a imagens de câmeras do circuito interno de vigilância da escola. O Brasil inteiro ficou em estado de comoção diante deste acontecimento. No espaço de alguns minutos, um antigo aluno, Wellington de Oliveira, deixou atrás de si um rastro de 12 mortos, 12 feridos e, sobretudo, uma profusão de questões e dúvidas. Como isto pôde acontecer? O que isto quer dizer? Por que ele agiu assim? Uma ruptura na ordem das coisas parece se operar, não no real, mas, na verdade, na capacidade de inteligibilidade: porque são fatos, aparentemente, destituídos de sentido. Trata-se de um choque. Face a este choque social midiatizado, as instâncias políticas são instadas a intervir.


Episódios violentos e sua aparente falta de sentido -  um convite à reflexão




       A primeira vista, este tiroteio na escola parece atípico, no que ele não coincide com as características habituais da violência, e nisto parece desprovido de sentido. No entanto, o fenômeno dos tiroteios em escolas [school shootings] não data de hoje. Identificado nos anos 90 como um fenômeno tipicamente americano, os tiroteios em escolas adquirem, a partir dos anos 2000, uma dimensão globalizada, na medida em que têm sua experiência multiplicada e reiterada, longe do seu berço original, em países, tais como: Finlândia, Alemanha ou Canadá. Segundo as definições deste fenômeno, torna-se mesmo possível pensar que massacres desta natureza também aconteceram na Argentina, Israel, Austrália, Iemen, China, Filipinas e Tailândia. Se a difusão midiática, em nível mundial, deste tipo de acontecimento tornou-se uma característica do fenômeno, o episódio midiático apresenta mais recentemente uma nova tendência: a produção de vídeos pelos assassinos.

       Como pano de fundo da repercussão deste fenômeno e do desenvolvimento de novas práticas midiáticas pelos atiradores, volta à cena o debate sobre a influência da mídia na produção da violência. Em resumo, corroborar a versão de que os media estariam à frente das mudanças deste fenômeno significa dizer que os media influenciam as práticas. A violência seria, então, de natureza imitativa. Convém, assim, interrogar, mais uma vez, acerca da influência dos media na produção desta forma de violência. É ao que temos nos dedicado a fazer por meio de uma pesquisa empírica nos últimos três anos.

       Num primeiro momento, ocorreu-nos pensar esta forma de violência como inacessível, em razão de sua manifestação mergulhar supostamente tanto os seus atores quanto os seus espectadores num espaço fora do alcance do sentido, algo como o outro lado do espelho. Mas atribuir significado só se faz ao preço da ausência do objeto e da distância que se interpõe entre os dois: significante e significado, palavra e « coisa » nomeada (ser, processo, fenômeno investigado etc.). Uma vez assumido este pressuposto, a violência torna-se perfeitamente tangível, a partir do momento em que a pensamos pelo ângulo da construção de sua experiência no front da realidade social.


Os media e a violência contemporânea


                                        Foto: Mione Sales - « Grafite » – Paris


       Desse modo, pode-se afirmar que a violência não existe em si. Ela só adquire sentido numa relação por oposição e por exclusão. Considerado este aspecto, a violência não escapa ao social, ela se constrói aí, e sua experiência se faz não do outro lado do espelho, mas do lado do terreno da realidade, onde se materializam formas e símbolos. Ela se faz no terreno da sua concretização em palavras, o que leva à constituição de um sentido. Ela se faz no terreno das interações, em que cada mediação a traduz e a forja. 

      Eis por que procuramos visualizar como ela se construía e adotamos a posição de dizer que ela não pode, ou sobretudo não pode mais, ser compreendida sem a mediação dos media. Mas principalmente é de uma mudança de paradigma que o nosso trabalho fala. Os assassinos são, a princípio, espectadores desta forma de violência, ou são associados a listas de discussão on line e seus « seguidores » [fr. fans], antes dos seus atos. Isto convida a repensar esta forma de violência a partir de interpretações do fenômeno que circulam no espaço público, no caso a Internet, feitas pelo público de espectadores do episódio dos tiroteios nas escolas. O objetivo é visualizar a experiência da violência moldada através das mediações midiáticas.


Uma pesquisa sobre a experiência social da violência


                 Ilustração:   « Onda »


       A pesquisa realizada interroga a experiência da violência por meio de três prismas. Em primeiro lugar, a experiência em foco é aquela do episódio midiático de Virginia Tech [Virginia Polytechnic Institute and State University] - massacre ocorrido nos Estados Unidos, em 16 de abril de 2007, quando morreram 33 pessoas, entre alunos e professores -, a partir da análise visual e discursiva dos comentários dos internautas numa plataforma de socialização de vídeos, YouTube. Em segundo lugar, a experiência estudada é aquela de grupos de discussão on line, acompanhados pelos « seguidores » [fãs] dos massacres nas escolas, aqui também investigados em função de suas participações visuais e discursivas no YouTube, e igualmente nos fóruns. Em último lugar, é a experiência propriamente dita dos autores de tiroteios - cuja declaração de intenção da passagem ao ato tem sido registrada em vídeos - que é investigada. Procuramos conhecer, ademais, como seus vídeos são interpretados no espaço público, principalmente pelos meios de comunicação de massa.

       Centramos nossa atenção, portanto, nas conversações travadas por meio de vídeos postados no YouTube a respeito do massacre de Virginia Tech pelo público de internautas, desde a data do fuzilamento até algumas semanas depois. O objetivo do primeiro eixo de investigação foi o de compreender as modalidades de participação e de associação propiciadas pelo encontro entre um dispositivo midiático - vídeo -, mais um determinado episódio de violência e seu público. Normalmente, os eventos de grande repercussão midiática geram uma necessidade de comunidade, contribuindo para o abandono de posições individualistas e isoladas, em prol da associação a um grupo, sem sair da intimidade do lar.

       Esta primeira fase da investigação permitiu mostrar que as novas tecnologias possibilitam reuniões on line [diz-se de todo reagrupamento instântaneo e informal, de pessoas em torno de uma notícia / assunto, ou seja, a partir da sua participação e reação em sites de Internet, sob a forma de comentários ou mesmo da publicação de novos vídeos] entre anônimos provenientes do mundo inteiro. A necessidade de estar junto e à procura de « significações » constituiriam os denominadores comuns deste bate-papo on line, visível pelos espectadores. Uma segunda aprendizagem é que a participação nesta comunidade global é deflagrada pelo evento midiático, mas fundada sobre a impressão de proximidade. Os media oferecem, nesta perspectiva, a possibilidade aos internautas de fazerem parte do evento. Desse modo, os diferentes formatos de participação no fato midiático – sob a forma de vlogs (quer dizer, blogs de vídeos) ou de « memoriais em imagens » [clipes, em geral, que contêm um remix de imagens captadas na imprensa] – podem ser compreendidos como uma forma de experiência.

       Enfim, esta pesquisa mostrou que os comentários, a princípio, veiculados por esta comunidade on line interessada no drama não são distantes daquelas promovidas pelos media de massa, fortalecendo, ao final, os pontos de vista dominantes de condenação desta forma de violência.


Os « fãs » dos tiroteios e os grupos de discussão on line


                                        Fonte: Neuronetics –  « Elos »


       No decorrer das semanas, enquanto prosseguíamos nossa pesquisa na Internet a respeito do público interessado no episódio de Virginia Tech, começamos a perceber uma outra faceta do público internauta. Foi quando nos demos conta daqueles que se apresentavam como fãs dos fuzilamentos, configurando-se como « seguidores » dos canais de expressão e culto virtual desta forma de violência. Inversamente à opinião dominante, as reações destes fãs mostravam-se a favor dos tiroteios nas escolas [school shootings]. Subversivos, por seus gostos culturais, suas fantasias a respeito da violência e suas tomadas de posição ideológicas, estes « grupos instântaneos de discussão” on line podiam ser interpretados como um fator que contribui para a passagem ao ato, no caso de tiroteios em escolas. Entretanto, a análise das produções audiovisuais e discursivas postadas on line por 81 fãs, além da observação de conversações espontâneas a propósito dos vídeos, no seio dos perfis e dos fóruns de discussão, autorizam-nos a contrastar esta visão.

       Ao interrogar sobre a sua sociabilidade no seio destas redes, tentamos compreender as razões do seu interesse, mais a maneira pela qual este público se envolve com o fenômeno violento midiatizado e os elementos que forjam o seu apoio. Ora, o apoio ao fenômeno, construído sobre a base de uma identificação a valores similares, de acordo com as interpretações dos massacres nas escolas, oferece, na realidade, um acesso a debates sobre as instituições tradicionais e questões existenciais. Estes debates, regulados internamente pelos membros do grupo, contribuem para o questionamento dos limites morais e a construção de pontos de vista individuais. Assim, estas « comunidades » on line revelam espaços, no seio dos quais novas maneiras de socialização se produzem, mesmo se estas instâncias de socialização coexistem muito mais do que suplantam as formas de socialização mais tradicionais. Em suma, enquanto expressão da subcultura juvenil, estas redes expõem os modos pelos quais a juventude contemporânea distingue sua individualidade; constituindo o interesse pelos massacres em escolas, antes de tudo, um sintoma e as práticas midiáticas um suporte à individuação.


A novidade dos vídeos produzidos pelos assassinos


Foto: Mione Sales – Placa em homenagem ao filósofo V. Jankélévitch, Île St Louis – Paris.
      

        Após a descoberta dos fãs on line, tomamos também conhecimento dos vídeos mais atípicos: aqueles dos assassinos. A Internet abriga estes vídeos e os torna públicos, sem, porém, torná-los visíveis. Por isso, o evento midiático deve intervir: seu suporte é indispensável para assegurar a posteriori a visibilidade de tais produções audiovisuais. O que equivale a dizer que a Internet pode abrigar vídeos produzidos por futuros assassinos, ainda que eles não tenham nenhuma visibilidade antes da passagem ao ato. Sua visibilidade é assegurada pela espetacularização midiática, logo é coproduzida pelos media de massa. A publicização do material é garantida pela Internet, pelo fato de ser impossível regular os conteúdos postados on line. 
  
       Sob a luz da relação entre meios de comunicação de massa e novas tecnologias, e do recurso cada vez mais sistemático da produção de vídeos pelos assassinos antes da passagem ao ato, desenvolvemos uma terceira e última pesquisa. Impunha-se precisamente a necessidade de conhecer a maneira pela qual os media são utilizados como parte de uma estratégia de comunicação no seio do espaço público, constituindo um dos recursos da ação. A análise da publicização midiática de 46 produções em vídeo realizadas por oito assassinos mostra, ademais, que a passagem ao ato, para estes rapazes em busca de reconhecimento, é vivida como uma maneira de modificar o sentido de sua existência e de afirmar sua virilidade, ao fabricarem para si um perfil de acordo com essa imagem.
      
       Ao invocar princípios imorais – por meio de um conjunto de justificativas e/ou da exibição de seu gosto pela violência – e ao se atribuir um lugar de vítima num mundo dominado por « alienados », os autores dos tiroteios deixam entrever questões existenciais típicas da idade adolescente e das pressões do individualismo na época contemporânea. A natureza imitativa destes vídeos instiga a que se avalie efetivamente de que maneira os media participam dessa forma de violência, na medida em que abrem a porta ao apoio a tais produções audiovisuais. [Vale sinalizar que logo depois de cada evento violento midiatizado, opera-se em sites como YouTube uma espécie de « caça »/supressão de tais vídeos produzidos por assassinos e seus fãs]. Acreditamos, porém, que os media não expandem a violência, visto que seu papel permanece passivo.


Violência, práticas midiáticas e novas tecnologias – conexões possíveis


                                                     Ilustração : CBrEMT - « Conexões cerebrais»
 
 
       Finalmente, se múltiplas explicações tentam esclarecer o fenômeno dos tiroteios em escolas, estes episódios violentos ganham em ser compreendidos à luz das mudanças ocorridas nos últimos anos, em termos de desenvolvimento das práticas midiáticas e das novas tecnologias. Na verdade, o estudo da experiência da violência vivenciada, indiretamente, via mediações midiáticas permite mostrar a importância da dimensão social desta forma de violência, tanto na constituição de comunidades efêmeras quanto de grupos e redes mais duráveis. O misto de excitação e comoção no qual mergulha, a cada vez, toda uma massa de espectadores lembra-nos que os media são fonte de vínculo social, assim como canal da veiculação de eventos, que contam com espectadores potenciais em nível mundial.

       O estudo desta modalidade de evento midiático permite, por fim, demonstrar que, diferentemente da noção cara ao « senso comum » de que a violência é apenas destruição, sua experiência, ainda que virtual, logo à distância, responde às pressões do individualismo, contribuindo, paradoxalmente, para a construção dos indivíduos enquanto sujeitos. Segundo esta perspectiva, os media são um suporte e um recurso para a ação, mas eles não expandem a violência. Eles permitem, sim, que pessoas se associem e se federem em torno de ideias, constituindo os tiroteios nas escolas, portanto, um pretexto e um sintoma contemporâneo.
______________


* Nathalie Paton – é doutoranda em Sociologie na Universidade de Toulouse 2 le Mirail, na França, onde ele termina atualmente sua tese sobre a experiência social dos massacres nas escolas, vivida através de mediações midiáticas. Ela trabalha como ATER (assistente temporária de ensino e de pesquisa) na Université de Paris Est Créteil. Contato: nathalie.paton@gmail.com


** Mione Sales ** - é doutora em Sociologia (USP), editora e colaboradora do Blog Mídia e Questão Social, onde assina a editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta.
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Tradução / Texto Ilustração:

  « Aquele que foi não pode mais deixar de ter sido: doravante este fato misterioso e profundamente obscuro de ter vivido é seu ‘passaporte’ para a eternidade ».   O irreversível e a nostalgia – V. Jankélévitch –

::::::::::


SUGESTÕES DE LEITURA

- NEWMAN, Katherine S., Rampage. The social roots of School Shootings. Hardcover, 2004.
- MUSCHERT, Glenn. “Research on school shootings”. Sociology Compass. Volume 1, Issue 1, pages 60–80, September
2007


LINKS

Repercussão midiática
http://www.youtube.com/watch?v=KElyLrrTLB0&feature=related
[Virginia Tech Shooting Confession Video]
[ AC360 - VA Tech Massacre - Roommate Interview (part 1) ]

Alguns  vídeos de Virginia Tech (dentre eles, os "memoriais em imagens")

http://www.youtube.com/watch?v=2uECizhheY8

http://www.youtube.com/watch?v=_I42fhXuLtE


Por fãs:
http://www.youtube.com/watch?v=7M2Ar8OlVOg

Pelos autores de tiroteios:
http://www.youtube.com/watch?v=1ArDilnovf8                                                  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário e/ou impressão...